sexta-feira, 30 de setembro de 2011

domingo, 25 de setembro de 2011

Lisboa nos passos de Fernando Pessoa

Viajando com Fernando Pessoa-

É com prazer que anuncio esse novo projeto em andamento.
A partir do dia 6 de outubro estarei coordenando uma viagem literária, cujo fio condutor será um curso sobre o "Livro do Desassossego" de autoria de Bernardo Soares. O diferencial é que o curso será ministrado em Lisboa e, em paralelo, iremos refazer os passos de Fernando Pessoa, em seus pormenores, pela cidade em que viveu e tão preciosamente detalhou em verso e prosa.
Bernardo Soares, um dos heterônimos do poeta, ou melhor, um semi-heterônimo, o "grau zero" das figuras pessoanas, autor do referido "Livro", traz nas centenas de fragmentos que o compõem suas reflexões e seu olhar para Lisboa, a partir da janela do prédio da Rua dos Douradores, um dos pontos chaves do nosso percurso.

Sobre o curso-
O "Livro do Desassossego" pode ser lido como a autobiografia sem fatos de um sonhador, o heterônimo Bernardo Soares. Prosa poética, o texto é fragmentário, lacunar e visual... como um sonho. Uma fotografia feita em palavras do próprio interior do autor como do seu olhar para o cotidiano da cidade. A partir da leitura e discussão de alguns dos seus fragmentos, o curso abordará a variedade de tons que atravessam sua escrita.

Informações e inscrições-
Entrar em contato com Silvia Moreira
tel: 21-2179-4242 ou silvia@coliseutur.com.br





quinta-feira, 4 de março de 2010

O "Monodrama" de Carlito Azevedo

Depois de treze anos no silêncio, foi com grande prazer que os leitores do poeta carioca Carlito Azevedo receberam em dezembro/09 a publicação de seu mais recente livro, "Monodrama", pela 7Letras.

Com um conjunto amplo de poemas "de tirar o fôlego", Carlito alcança neste trabalho, talvez o mais pessoal de sua trajetória, a marca da poesia de alta qualidade: permite que o leitor ouça o som da voz do poeta. Em várias páginas de "Monodrama" me vi cruzando "leitura com escuta", uma sensação que poucos poetas podem propiciar. O próprio Carlito ao definir a linguagem que compõe sua poesia a situa como "mais próxima do ritmo de minha fala, das pausas de minha respiração".

Um outro valor a ser destacado no livro, entre tanto outros, é a mancha da página. Importante o cuidado do poeta/editor com a distribuição das frases e dos vazios que compõem os poemas, dando-lhe uma dinâmica, um arejamento, um sopro mesmo, que permitem ao leitor como que se colocar frente aos versos.

Apresentando poemas que são sensíveis às questões da cidadania, do imigrante, da contemporaneidade, do drogado, de caminhadas cariocas pelo centro do Rio, do tempo e do espaço, que questiona a percepção da realidade em um mundo encharcado de contradições, de perdas e desencantos, que vão do lirismo ao dramático, que trata da morte (em belíssima construção sobre a morte de sua mãe), acredito que se possa dizer, porém, que o amor é o grande personagem do livro. É o próprio Carlito que afirma em uma entrevista: "O amor é a única coisa que importa no fim das contas... O amor gerou Clarice Lispector. O amor gerou Chagall. O amor gerou Spinoza e Oscar Niemeyer. Quer se trate do amor à verdade, do amor pelo saber, ou do amor que se dá entre duas pessoas, quem não se deixou tocar por esse sentimento se tornou um inútil, uma versão diminuída e cretinizada do humano. Que você tenha notado que o amor perpassa todo o livro, abrindo nele pontos luminosos, tornando-o poroso a esse êxtase permanente do viver, me parece melhor do que qualquer elogio. "

Com um sólido trabalho na coordenação de oficinas de poesia onde vem formando um rico naipe de poetas na cidade do Rio de Janeiro, ou como tradutor, ou ainda como editor de revistas de poesias, com "Monodrama" Carlito Azevedo vem firmar-se como uma das vozes mais fortes da poesia que se produz no Brasil na atualidade.

.....
A busca do meu próprio rosto no alfabeto
azul-ozônio que subia, livre, tatuado,
braço acima e céu acima, até a praia de flamingos
de um colo nu, órbita de
miçangas lunares, sublunares.

Não há resposta, camponês, nunca houve
em céu algum, vida alguma, isso de respostas,
só a veemência de uns espelhos

E assim, enquanto avançavam as horas no relógio de Júlio de Abreu
e ficavam para trás todos os sorrisos ("e esquilos brincavam
nesses sorrisos como se sobre ramas", sussurrava
uma voz volátil),
dentro do táxi,
no fundo do coraçào, disparado,
seguia comigo
o rosto de Marília.

A poesia de Juan Gelman

Em recente viagem à Buenos Aires (fevereiro/10), tive acesso a poesia do argentino Juan Gelman (1930, um dos mais reconhecidos poetas da atualidade). Filho de ucranianos de origem judia, sua vastíssima obra, mais de 30 livros, quase toda reeditada pela Seix Barral, tem sido traduzida para o inglês, francês, alemão, italiano, holandês, sueco, checo, turco, japonês, chinês e português. Seu trabalho mais recente é de 2009: "De atrásalante en su porfía".

Gelman viveu no exílio durante doze anos à época da ditadura militar na Argentina, quando perdeu seu filho e sua nora, grávida, que passaram a fazer parte do conhecido grupo de "desaparecidos". Tempos mais tarde conseguiu encontrar os restos mortais apenas do filho.

Sua obra traz a marca da diversidade, já que é atravessada por variadas técnicas de criação poética, o que o torna um poeta livre de rótulos. Sobre sua poesia, uma poética social, Julio Cortázar considerava que "talvez o mais admirável seja sua quase impensável ternura ali onde mais se justificaria o paroxismo do rechaço e da denúncia, sua invocação de tantas sombras por meio de uma voz que sossega e arrulha, uma permanente carícia de palavras sobre tumbas ignotas." Seu poema "Gotán" ("tango" na gíria lunfardo) está entre os mais conhecidos poemas argentinos.

A Universidade Federal do Ceará acaba de publicar a primeira edição brasileira do livro "Dibuxu" ("Debaixo") de Gelman, um trabalho ímpar, já que traz uma coleção de 29 poemas amorosos, escrito em sefardita, a língua dos judeus da península ibérica, um idioma antigo que marca uma das origens da própria língua espanhola. A edição brasileira é trilingue: sefardita, português e espanhol.

Para alguém que ainda esteja em dúvida se vale a pena ler Juan Gelman, segue o poema "Escribo en el olvido..."

Escribo en el olvido/ en cada fuego de la noche/ cada rostro de ti./ Hay una piedra entonces/ donde te acuesto mía/ ninguno la conoce/ he fundado pueblos en tu dulzura,/he sofrido esas cosas,/eres fuera de mís,/me perteneces extranjera.

quinta-feira, 13 de agosto de 2009

Os "sonhos diurnos" de Juan Carlos Onetti

Autor de uma obra notadamente inovadora, que lhe concedeu o Prêmio Cervantes de Literatura em 1980, Juan Carlos Onetti, uruguaio, dizia que escrevia porque gostava de contar histórias, tanto para atender a um prazer pessoal como para seu vício e, ainda, para sua "doce condenação". Compositor de romances impecáveis com personagens complexos, suas histórias cruzam o espaço da cidade fictícia de Santa Maria. Eram portadores de traços fortes como o desencanto e o inconformismo e a convivência com o fracasso, além do peso da idéia permanente do suicídio.

Onetti nomeava-se um pessimista natural e radical. Ao ser perguntado se, caso fosse possível, viveria em Santa Maria, respondeu: "Santa Maria não existe além de meus livros. Se existisse realmente, se pudesse viver ou vivesse lá, inventaria uma cidade que se chamasse Montevidéu".

Há já algum tempo que desejo postar no Projeto Rayuela alguns dados de Onetti, um dos grandes autores contemporâneos. Além de considerar muito seus escritos, que conjugam lucidez com corrosão, gosto quando esclarecia que encontrava seus temas em "sonhos diurnos", através de um "impulso onírico". Ao referir-se aos envolvimentos políticos dos escritores, disse que o único compromisso que aceitava era a determinação em tentar escrever sempre bem e melhor e conseguir tratar com sinceridade como era a vida que lhe coube conhecer e como eram as pessoas condenadas a transformarem-se em personagens de seus livros e ainda acrescentava: "Quero expressar nada mais que a aventura humana". São afirmativas caras a uma psicanalista...

Onetti obteve o reconhecimento de grandes escritores como Juan José Saer, Gabriel Garcia Márques, Juan Rulfo e Julio Cortázar, este um grande amigo, que costumava nomeá-lo "o maior romancista latino-americano". Na mesma vertes, Ángel Rama, referindo-se a "O Poço", considera que "este arisco, crítico e desolado texto, abre a narratiga contemporânea."

Mas é o depoimento de Mario Benedetti sobre os contos do amigo Onetti, que me encanta e verdadeiramente tem, acredito, o valor de uma importante observação em uma oficina de contos: "Como Onetti é sábio, sabe que não sabe e por isso seus contos são insondáveis e são como seres vivos que temos que voltar a ver outras vezes, do início até o fim, pelo meio, e pelas esquinas das páginas e dos parágrafos; e recomeçar porque a vida e os contos são complicados, e depois de um tempo adiante, seis anos ou uma semana, o conto já é outro,..., e então temos que recomeçar a dar-lhes voltas, agitá-lo antes de retomá-lo e deixar que as palavras voltem a assentar-se, para uma vez mais revelar seu mistério..., porque este é seu alvo secreto, e alguém vai se dando conta disso e percebe, através de um viés bem mais melancólico, que isso é um conto, e que, por esse motivo, os contos não podem ser muitos, porque o coração não resistiria e, se são de Onetti, menos ainda. E Onetti sabe disso e por isso não os escreveu tantos para dar possibilidades que passemos aos seus romances, onde é sempre mais fácil, por uma razão ou outra, acostumar-se às coisas, e sobreviver."

Onetti nasceu em 1909 (estamos no centenário de seu nascimento) em Montevidéu e faleceu em 1994 numa clínica em Madrid. A editora Planeta está publicando "O Poço", seu primeiro romance e republicando outros tantos. Recomendo ainda a leitura de "Os 47 contos de Juan Carlos Onetti", escritos entre 1933 e 1993, publicado em 2006 pela Companhia das Letras.

sexta-feira, 29 de maio de 2009

A morte do autor

18 de maio de 2009
Acabo de viver uma experiência inteiramente inusitada de pesar e, ao mesmo tempo, de estranhamento frente a uma perda. Estava no escritório de casa com um livro com o qual fui recentemente presenteada. Após algum tempo de leitura, resolvi abrir o computador e qual não foi o impacto quando li a notícia do falecimento, no dia anterior, do autor do livro que estava lendo! O livro: "Primavera num espelho partido". O autor: o uruguaio Mario Benedetti.

Ainda bastante envolvida e emocionada, a memória me trouxe alguns rápidos dados de sua trajetória como escritor. Autor de exceção, publicou mais de oitenta livros entre ficção, poesia, ensaio e teatro. Construiu uma literatura de alcance continental, por ter sido um intelectual profundamente engajado com as questões políticas e históricas da América Latina expressas em suas obras, sempre portadoras de qualidade incontestável. No entanto, esclarecia quando oportuno: "Nunca fui comunista, nunca militei em partidos. Estive por algum tempo na Frente Ampla, mas como independente. Não sirvo para ser um dirigente. Para um intelectual é muito duro... Creio que possa fazer mais politicamente com o que escrevo que diante de uma tribuna."

Montevidéu foi sua grande personagem, não por meio de suas ruas e praças, mas do cotidiano de seus habitantes, em torno dos quais Benedetti construía uma narrativa carregada de imensa originalidade. Em 1973, devido a ditadura militar, teve que deixar o país e viveu exilado no Peru, na Argentina, em Cuba e na Espanha. Só depois de doze anos pode voltar ao seu Uruguai.

Ganhou projeção internacional em 1960 com "A Trégua", considerada sua melhor novela, que chegou a ser adaptada para o cinema. Alguns outros trabalhos importantes foram: "Quem de Nós", "Poemas de la Oficina", "Montevideanos", "Gracias por el Fuego" e "Primavera num Espelho Partido".

Gosto em especial de suas poesias. Para Mario, "a poesia é o gênero mais vulnerável à interferência da própria vida do poeta. Os outros gêneros são de ficção, a poesia não". Também aqui a política e as questões sociais estiveram presentes, mas são aquelas voltadas para a solidariedade e, principalmente, para o amor, as que conquistaram em definitivo seus leitores.

Nesses últimos tempos vinha trabalhando em mais um livro de poesia que receberia um título precioso: "Biografia para encontrar-me".

28 de maio de 2009
Só ontem consegui retomar minha leitura. Os personagens estavam todos lá e pacientemente aguardavam meu retorno: Santiago, Graciela, a menina Beatriz, Rolando e Dom Rafael com sua Lydia. Também Mario Benedetti me aguardava. Entreguei-me ao livro e cheguei ao final de um só fôlego. Me dei conta de que, seja como for, um autor nunca abandona seus leitores.

domingo, 12 de abril de 2009

A palavra viva de Clarice Lispector

Inesgotáveis são as abordagens de uma obra e, mais inesgotáveis ainda se tornam, quando se trata de Clarice Lispector. Figura singular dentro do cenário da literatura brasileira, a autora inaugurou uma nova fase que alcançou a prosa de toda a América Latina.

Semana passada concluí o curso em torno de "Água Viva", um livro que trata da liberdade de viver. É para mim, sempre, uma experiência muito enriquecedora quando me proponho a falar de Clarice Lispector, já que ela nos coloca frente a uma experiência estética do mundo, oferecendo-nos textos altamente instigantes, marcados em geral por forte ficção introspectiva.

Na primeira aula "Água Viva" foi situada como resultado da redução de uma produção anterior intitulada "Objeto Gritante". Em seguida foi dado tratamento à desconstrução e o redimensionamento da linguagem no texto, ao propor o diálogo sobre o indizível. O terceiro encontro tratou da poética do silêncio, dando ênfase às "cenas fulgor" e à escrita em si, quando foram feitas algumas articulações com as obras de Maria Gabriel Llansol e Manoel de Barros. E por fim, o enfoque foi voltado para a temática do espelho e do duplo, transitando entre o desconhecer-se e o conhecer-se e abrindo alguns caminhos até os mestres argentinos Borges e Cortázar, com o propósito de um traçado em torno da literatura da América Latina.

Em "Água Viva" Clarice articula uma escrita que se faz com o corpo inteiro, querendo alcançar mesmo a impossível fixação do incorpóreo. A narradora, uma pintora sem nome que, ao abrir mão do pincel, pinta através das palavras e segue tecendo uma possível reinvenção do amor. Porém, o cerne de "Água Viva" não é contar uma história, pois não há uma narrativa, mas sim uma intenção de apreender o "instante-já", o presente puro, ou seja, a forma fantasmática de paralisar o presente. Sua trama é tênue: trata das sensações de um eu, no feminino, que se dirige a um tu, no masculino. Sensações e ânsias.

Em movimento circular ininterrupto o texto transita entre a pintura, a escritura e a música. "Gosto de intensidades", afirma a narradora, que quer, respectivamente, pintar o "figurativo do inominável", escrever "uma verdade inventada", sem sentido, o além da linguagem, o atrás do pensamento, e, por fim, ouvir uma música de câmara sem melodia, como forma de expressar o silêncio. Sua escrita "é de câmara". Linguagem de desconstrução.

A escrita prossegue com um texto híbrido, que transita ente o orgânico e o inorgânico, produto de intensa liberdade e de uma postura revolucionária da língua, e deste modo "Água Viva" se faz em perfeita poesia escrita em prosa, onde o enredo tem importância secundária. O mesmo acontece com o espaço geográfico e o tempo cronológico, uma vez que a narrativa concentra-se no aspecto emocional tanto do primeiro quanto do segundo. Pode ser considerada uma obra ao avesso, uma não-linguagem, uma escrita não-verbal. Uma escrita para ser ouvida, além de ser lida. Ou melhor, uma escritura que pede leitura e escuta, a escuta da voz do texto, a escuta do pensamento de Clarice Lisepctor.

Uma outra característica do livro é que, ao ser movido pela agudeza e pelo fluxo do pensamento, coloca de lado os princípios do texto convencional, abandonando as normas começo/meio/fim, ou ainda, sujeito/verbo/predicado. Desobriga-se das formalidades, fazendo uma verdadeira "convulsão da linguagem", segundo a própria Clarice, em incessante movimento de deslocamento e descolamento. Uma linguagem que tem a marca do inconcluso, do não-fechamento, marca esta que está claramente expressa na frase final do livro:"O que te escrevo continua e estou enfeitiçada."

Água que desliza, escorre, em fluxo incessante. Água de vida. Em processo de contínua abertura, a palavra segue em seu processo de criação, falando das origens, jogando seu anzol às profundezas, "... a palavra pescando o que não é palavra", buscando alcançar a escrita de um universo arcaico, pré-reflexivo, ou seja, o âmago de tudo, o indizível. Procura o que está atrás do atrás do pensamento, levando-nos a um momento silencioso ou carregado de ruído. Tanto faz. Um desejo regressivo de ouvir o grito do objeto.

São palavras pulsantes, capazes de invocar algo mais além delas mesmas, que compõem uma linguagem fragmentária, calcada na experiência de travessia do espelho. Uma metáfora da atitude amorosa do sujeito que possibilita sua ligação à própria imagem e que mediatiza suas relações com os objetos do mundo.

Clarice fala ainda das obscuridades que a assediam, ao tomar a palavra sem medo de comprometer-se. Ao contrário, ela enfrenta o desconhecido, o significante fechado e escondido, visando o secreto, mesmo sabendo-o incapaz de expressão, e, ao querer fazer seu contorno, explicita o mutismo e modela uma poética do silêncio, através de uma eloqüência incomparável.

Acredito que Clarice ao escrever a partir do balbucio, das primeiras emissões de sons da fala, do lugar que fica atrás do pensamento engendra uma homenagem ao próprio ato da escrita, à escrita em si. Trabalha, em texto de colagens, uma escrita tramada em torno da presença da palavra viva.

Singular, ambígua, irredutível em sua proposta polifônica "Água Viva" leva-nos por fim a enfrentar uma área plena de explorações. Assim sendo, concluo apontando para a importante possibilidade que o leitor tem, ao aproximar-se da reflexividade da obra e acompanhar o caminho de despersonalização da narradora/pintora, de fazer a (des)construção do texto de seu próprio processo identificatório, caminho próximo ao processo psicanalítico, experiência que poderá ser dolorosa, mas que será sempre renovadora.

sábado, 28 de fevereiro de 2009

A poesia com cheiro de tangerina

Considero Ferreira Gullar a expressão viva de nossa poesia maior, de uma poesia brasileira, latino-americana. A tradução de uma universalidade latente no nosso cotidiano, "na nossa vida de marginais da história, como outros poetas em seu próprio momento e à sua maneira já o tinham feito", como ele próprio costuma dizer.

A Luta Corporal e o Poema Sujo são duas referências de seu trabalho.

A Luta Corporal escrito entre 1950 e 1953, impresso pelo próprio Gullar na oficina gráfica da revista O Cruzeiro, recebeu esse título por expressar uma época em que o poeta buscava uma identificação com a linguagem, um ideal de que seu nascimento fosse simultâneo ao do poema. E o livro porta essa explosão da linguagem: F. Gullar ansiava transformá-la num corpo vivo, "vivo como seu próprio corpo". O resultado foi a violência da sintaxe e dos vocábulos a ponto do poema ficar quase ilegível, sem deixar de trazer, porém, uma estrutura lúdica.

Por sua destruição das normas, da realidade com normas, pela destruição da linguagem poética, Gullar, de certa maneira, antecipa o movimento que os concretistas buscavam, e foi, por isso, convidado a trabalhar com eles.

Desse aparente fracasso, Gullar começa a rever seus conceitos. E preconceitos. Passa a ressaltar que a poesia se faz de uma realidade inventada, da transformação da experiência interior em linguagem, sem abrir mão, contudo, de uma poesia amarrada à realidade, "entranhada na carne, nos ossos", nos maxilares e costelas. Uma poesia resultado do espanto frente ao cotidiano.

O Poema Sujo surgirá como segundo momento crucial de sua criação, um marco na história da poesia brasileira. Embora tenha sido escrito à época de seu exílio na Argentina, não se trata de um poema político: é antes a expressão de uma situação limite, já que foi escrito como se fosse sua última produção. Como uma descarga. Uma tentativa visceral de resgatar o já vivido, muito mais do que um lamento pelo que havia sido perdido. Ao iniciá-lo, fato inédito, Gullar já escolhera o título e já sabia o volume do poema: de 70 a 100 páginas. Obra de grande intensidade, onde Gullar não foge às aflições de sua consciência da realidade, já que está circundado pelo caos político em toda América Latina, e as circunstâncias eram extremamente negativas quanto às perspectivas de um futuro. E foi deste modo que conseguiu responder às indagações e perplexidades que a vida lhe apresentava naquele difícil momento. F. Gullar diz que este poema tem uma estrutura sinfônica, dissonante e fragmentária, com ausência de pontuação, onde o corpo é o instrumento fundamental na interpretação da tensão entre os contrários, além de ser uma poesia de muitas vozes.

Ferreira Gullar me trouxe, no mínimo, duas lições com sua obra poética: aprendi que o poeta só alcança seus leitores na medida em que se expõe, na medida em que consegue falar de si, traduzir-se, e se fazer confundir com os demais para poder transformar, pelo menos, a si mesmo. Caso contrário, o fazer literário não se sustenta. E a outra lição, que ele passa de sua própria experiência de vida, é a importância da leitura para o processo da escrita, fato que é válido tanto para a prosa como para a poesia. Ou seja, para ser um escritor ou poeta há que se praticar, antes de tudo, a assiduidade da leitura.

Gullar ainda nos faz um convite: retratar a realidade, mas deixando-se levar pelo espanto, pela invenção, pela liberdade, e, principalmente, pela transcendência. Por aquilo que, segundo ele, "espanta e comove".

Iniciamos o ano de 2009 tendo a nosso dispor a edição da Poesia Completa, Teatro e Prosa de Ferreira Gullar. Um verdadeiro presente para quem gosta de ouvir os ruídos da vida, da natureza, da arte e da cultura.

Fecho esse pequeno texto citando parte de O cheiro da tangerina, uma, entre tantas, das minhas poesias favoritas de Gullar, onde as palavras vibram, onde as imagens têm movimento e cor, o poema tem cheiro, o deslocamento tem ritmo.

Rígidos em sua cor
os minerais são apenas
extensão e silêncio.
Nunca se acenderá neles
- em sua massa quase eterna -
um cheiro de tangerina.

Como esse que vaza
agora na sala
vindo de um pequena esfera
de sumo e gomos
e não se decifra nela
inda que a dilacere
e me respingue
o rosto e me lambuze os dedos
feito uma fêmea.

E digo
- tangerina
e a palavra não diz o homem
envolto nesse inesperado delírio
que vivo agora
a domicílio
(de camisa branca
e chinelos
sentado numa poltrona) enquanto
a flora inteira
sonha à minha volta
porque nos vegetais
é que mora o delírio

Clarice Lispector em espanhol

Em recente viagem a Buenos Aires tive a agradável surpresa de encontrar alguns títulos de Clarice Lispector em cuidadosa publicação em espanhol (2008) feita pela Editora Saruela (Madrid). Lá estavam entre outros "La hora de la Estrella","La Manzana en la Oscuridad", "Para no Olvidar", "Revelación de un mundo","La vida intima de Laura". O livreiro da Prometeo Libros (Palermo) ainda me disse que os livros estão tendo uma ótima venda, já que essa iniciativa da Saruela vem preencher um lacuna existente há um bom tempo. Acrescentou ainda que outros autores brasileiros estão entrando no mercado editorial de língua hispânica também com muito boa resposta. Fatos como esse trazem uma expectativa de um estreitamento mais que necessário nos laços entre as literatura de língua brasileira e espanhola.

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

Macunaíma e Emília, os heróis nacionais

Daisy Justus

Macunaíma, o herói de nossa gente


“E o homem sou eu, minha gente, e eu fiquei
pra vos contar a história. Por isso que vim
aqui.”
Macunaíma - Mário de Andrade


Macunaíma, nosso personagem literário, está definitivamente inscrito como representante de parte determinante de nossa cultura. O herói sem nenhum caráter não é só o herói de sua gente, mas é também o herói de seu autor, Mário de Andrade.

Mário explica que encontrou a figura do herói sem caráter nos trabalhos do etnólogo alemão Koch-Grünsberg. Ao fazer uma adaptação do referido estudo, surpreende ao compor uma rapsódia, já que o texto não é romance nem conto. Em suma, “uma tese personalíssima”, uma observação inteiramente inovadora: a de que o povo brasileiro ainda não tinha formado seu caráter nacional. Uma alegoria que se propõe a decompor o mito do herói brasileiro. José Miguel Wisnick frisa a questão, lembrando que Mário não disse que Macunaíma é um mau caráter, mas sim um sem caráter. Trata-se de um caráter ainda em formação, marcado pela fusão de raças. Como um mosaico. Daí situar-se além do bem e do mal.

Nascido à margem do Uraricoera, em plena floresta amazônica, atravessado pelo silêncio da noite, Macunaíma é filho dessa paternidade dupla (o etnólogo e o próprio Mário) e de várias mães, já que, citando Eneida Souza, “foi gerado com a ajuda de múltiplas vozes sopradas na orelha materna. Macunaíma nasce, segunda a lenda, como os heróis míticos, sem a presença paterna, sendo naturalmente concebido no útero de uma mulher virgem.”

Recusou-se a falar até os seis anos de idade e ao pronunciar a frase “Ai que preguiça”, carimba seu passaporte para entrada no reino da linguagem. Eis que “Acorda herói falante de muitas línguas”. Assim sendo, ainda que sempre preguiçoso, dominará no futuro o mundo da linguagem em toda sua amplitude e riqueza.

Estamos diante de um “herói incaracterístico”. Macunaíma não é só preguiçoso: ele tem outros “atributos”. É sensual, astucioso e ingênuo, mentiroso e sonhador. E trapaceiro. Sua imagem vai sendo construída a partir da fusão de diferentes personagens extraídos de vários textos tanto eruditos como populares. Resulta do cruzamento de identidades e nacionalidades heterogêneas, um enfoque multifacetado “cultivado tanto pelas vanguardas européias como pelas brasileiras, por sua multiplicidade, simultaneidade, rapidez e, portanto, proximidade com o mundo moderno”(Jaffe, N.)

A proposta de Mário de Andrade, ao abrir mão da criação de um personagem como efetivo representante de uma raça genuína, é apontar a mistura de raças que mantém vivo e constante o desafio de sustentação de nossa identidade. Desta forma um entendimento mais livre do herói só se sustenta “na sua composição mista, produto da união e do deslocamento de vozes diferentes”.(idem)

Macunaíma constrói, lembra Luciana S-Picchio , uma linguagem que é o resultado de um rigoroso estudo etnográfico e lingüístico de Mário. E aí temos um texto que explora as duplas negações (“Não sei não...”), insere o pronome átono no início da frase, e brinca com estas e outras formas de construção sintática. Uma arlequinada, para usar uma palavra cara ao autor. E, em meio a toda essa riqueza, surge a prova de força “em língua”, uma sátira ao português clássico, arcaico, como é o caso da "Carta aos Icamiabas", onde ele inverte o sentido da correspondência: enquanto os cronistas coloniais escreviam à cidade para contar sobre os índios, o Imperador Macunaíma escreve às suas súditas para descrever a vida "da capital do vício - São Paulo".

Leda Miranda Hühne lembra que Mário constantemente “construía sua obra em clima de jogo artístico, marca de seu trabalho” . Trata-se, porém, a meu ver de um jogo particular que conjuga o grave com o lúdico, a brincadeira com a solenidade, onde Macunaíma ocupa concomitantemente o lugar de grande parceiro e adversário de Mário de Andrade. Um parceiro que, ao narrar, confessa que mente. E, já que é assim, afinal, esse Macunaíma, afinal, constitui-se em uma verdade ou uma mentira? Um narrador especial, que traduz o que ouviu de um papagaio, um animal esperto, mas de fala repetitiva, que insere no seu discurso expressões populares, cacoetes, cantigas de roda e até provérbios e contos de fada.

A linguagem de Macunaíma, carregada de humor, de ironia, contraditória, panfolclórica, definida por seu próprio criador como “a língua de Macunaíma e de ninguém mais” expressa, ainda segundo Hühne, o extremo de “uma língua literária brasileira sem nenhuma base numa efetiva realidade lingüística nacional”.

O texto expressa a proposta de Mário de conceber a linguagem primitiva como originária, poética, tomada como alegoria. Nele há um predomínio da estilização e sistematização da língua oral, da fala do povo. Consta de metáforas consecutivas, “que se entrecruzam, se identificam e se diferenciam, podendo assim deixar em aberto os vários sentidos e vários planos que revelam a impossibilidade de adequar a narrativa aos dados imediatos do real ” (idem)e, acrescento: que fazem alusão a uma outra idéia, no caso à realidade do brasileiro no seu mundo.

O livro foi intencionalmente escrito com o instrumental que Mário de Andrade considerou como sendo a linguagem do Brasil. A fala de Macunaíma tem como ponto de origem a riqueza das fábulas e o desvio já previsto na linguagem primitiva, que se fez presente como resultado do apreço do autor por suas leituras da literatura de cordel, das lendas indígenas, dos seus estudos etnográficos. A linguagem modernista só fez potencializá-lo. Mário foi enfático:

_Será que não percebem que o que eu escrevo é
língua brasileira pelo simples fato de ser a língua minha,
a língua de meu país, a língua que hoje representa no mundo
muito mais o Brasil que Portugal: enfim: a língua do Brasil?


Impossível não haver um endereçamento direto desta língua que é toda a terra brasileira, ao contemporâneo de Mário, Bernardo Soares quando este afirma: “a minha pátria é a língua portuguesa”. Um certo desassossego, próprio aos escritores.

Macunaíma expressa na sua estrutura multifacetada a procura de uma linguagem dos tempos industriais brasileiros, tingida de tons tropicais, ao mesmo tempo que voltada para as questões interrelacionadas no passado e futuro, questões plurais, carregando europeus, africanos e amerabas. Sustenta o frescor de uma língua própria, nova, única.

Escrito em 1928, Mário ouviu dos modernistas que seu livro não era só novo, mas atual. Concluindo-o de forma indefinida, sugere reflexão. A ambigüidade de Macunaíma atravessa todo o texto e acompanha-o até o final. Mário antecipa-se ao que mais tarde seria tratado como “obra aberta”. Leva seu segredo para o céu.

A obra de Mário “desconcertou, provocou, fascinou multidões de leitores e de críticos”. Continua a fasciná-los e provocá-los, por tudo que sabemos, mas principalmente por ser “obra de fantasia e de poesia como poucas”(ibidem).


Emília, a Marquesa de Rabicó

“Emília não tem medo de ninguém; nem da vida, porque boneca propriamente não vive, nem da morte, porque boneca não morre. Não admite leis, nem regras, nem gramática. Não respeita cara nem autoridade. Bruxa de pano com olhos de linha preta, assim mesmo acha que tem tudo, não quer ouro nem fortuna, nem amantes, nem poder. Só quer aventuras e o direito de abrir a boca e opinar sobre o que bem entende. Emília, meu exemplo, e minha aspiração, tantas vezes meu raio de sol asneirento, faísca de liberdade, de coragem e de insolência, minha mestra e meus amores – Emília, Marquesa de Rabicó...”
Raquel de Queiroz

Emília é, sem dúvida, a grande criação ficcional de Monteiro Lobato. Pelo que irradia de vivacidade, de irreverência, de desconcertante e engraçado impôs seu lugar na galeria das personagens femininas marcantes da nossa literatura. A boneca é apresentada ao grande público na voz de seu criador como Excelentíssima Senhora Dona Emília no livro A menina do nariz arrebitado.

Já nas páginas iniciais o leitor tem notícias de que Narizinho estava sempre a conversar com a boneca, porém, só mais adiante, quando ela começa a falar de verdade, é que acontecerá sua metamorfose, transformando-se na criatura excepcional que seduz os leitores de Lobato.

Por isso a narrativa da aquisição do poder da fala é crucial na biografia de Emília. O Dr. Caramujo extrai por via cirúrgica as pílulas falantes da barriga do sapo, que tinha engolido todo o vidro e Emília, após prescrição médica, ingere uma delas. O autor explica:

“Emília engoliu a pílula bem engolida, e começou a falar no mesmo instante. A primeira coisa que disse foi: Estou com um horrível gosto de sapo na boca. E falou, falou, falou mais de uma hora sem parar. Narizinho, atordoada, disse ao doutor que era melhor ela vomitar aquela pílula e engolir outra mais fraca.....
- “Isso é fala recolhida, que tem que ser botada para fora”, explicou o médico
E assim foi. Emília falou três horas sem tomar fôlego. Por fim, calou-se.”

Essa falação “será a marca registrada de Emília, apontada em diferentes momentos por todos e até pelo próprio narrador, que a ela se refere como torneirinha de asneiras”, afirma Marisa Lajolo.

Emília abusa de uma lógica implacável e sem limites, “que se alterna com um surrealismo cheio de non-sense e trocadilhos”, prossegue Lajolo. Pelo dom da palavra convence e muitas vezes impõe seus pontos de vista aos outros personagens, assumindo sua independência e a liderança nas incríveis aventuras do grupo.

Sustenta o lugar da diferença na literatura de Monteiro Lobato, tornando-se definitivamente estrela e musa do autor e de seus inúmeros leitores. Com uma postura crítica frente às normas e padrões pré-estabelecidos, questiona tudo e todos, sugerindo propostas desconcertantes e desafiadoras. Passa a ser vista como o porta-voz de Monteiro Lobato, um profissional sempre inquieto e muito crítico, atuante em diferentes áreas, não abrindo mão de participar de todas as questões importantes referentes ao seu país e à sua época.

Importante destacar que, ainda conforme o estudo de Marisa Lajolo, se através da fala Emília supera sua condição de ser inanimado, “ao manter-se boneca ela goza de uma liberdade muito maior do que a dos seres humanos” dos quais, afinal, é mera representação. “Além de imortal por natureza... a boneca falante Emília desfruta do melhor dos dois mundos: o das coisas e o das gentes, fecundando um com o ponto de vista do outro e vice-versa” (Lajolo), num rico jogo dialético. E essa foi a grande criação, o grande achado de Lobato.

Emília será sempre um personagem polêmico. Como curiosidade lembramos que o Visconde é o sábio, mas Emília domina-o completamente. Autoritária, faz com que ele cumpra todas as suas vontades, e essa “aliança” com ele irá se transformar numa ponte entre a ciência e a tecnologia, ao mesmo tempo que irá se solidificando no decorrer da obra de Lobato.

Situa a verdadeira moral num plano diferente, para além das normas e convenções, dos belos propósitos e de todo sentimentalismo. A verdade nua e crua é a base da sua moralidade. O sentido de estar no mundo é agir em favor dos próprios interesses e o melhor que pode ocorrer é que os fracos aprendam a ser como os fortes. A filosofia da Emília pode ser lida como uma reescritura dos autores prediletos de Lobato: Nietzsche, Schopenhauer e Spencer, observa Freitas Filho. O mundo se expressa por um duelo sem limites entre poderes que buscam a vitória sobre os infortúnios. Conforme a situação, os fins justificam os meios. A lei da vida é a lei do mais forte. A famosa “Lei de Gerson”.

E o procedimento básico de Emília, seu modo de subversão por excelência – ainda um eco de leituras nietzscheneanas – é desmascarar as palavras. Ela explora o trocadilho, o duplo sentido e o falso cognato, transmitindo ao pequeno leitor uma noção ao mesmo tempo lúdica, instrumental e prática da linguagem. Sem comprometer sua “invejável vitalidade prática, Emília é um ser eminentemente lingüístico” (Freitas Filho).

Dito de outra forma, ela desmonta a correspondência entre palavras e coisas, mostrando que a língua se presta a diferentes usos que dependem unicamente de seu contexto e posição. O exemplo princeps desta proposta está, é claro, em Emília no País da Gramática, mas esse comportamento da boneca é uma constante nos demais livros. Note-se que idêntico procedimento é adotado em relação às idéias e aos projetos, os quais são manipulados com a mesma mestria que ela tem com as palavras.

A boneca torna explícito o pragmatismo de Monteiro Lobato e sua estratégia para alcançar seus objetivos dando pouca ou nenhuma importância aos meios convencionais. Essa postura frente à tomada de posições, tanto de Emília como de Lobato, provocou muitas contrariedades ao escritor.

A proposta do autor foi também a de reescrever as fábulas tradicionais dando-lhes nova roupagem, redirecionando-as no que tange à moralidade. Seu texto terá como objetivo interferir na formação da estrutura emocional e identidade cultural da criança, indo muito além de um simples passatempo ou mesmo de uma contribuição à sua educação formal.

A magia das criações de Lobato se apresenta num cruzamento entre o olhar que atravessa a universalidade e sua trama com a matéria-prima regional, o que as torna acessíveis a toda e qualquer criança. Ao eliminar o preciosismo, Monteiro Lobato ficou frente a frente com o enigma da brasilidade, abusando de uma linguagem encharcada de oralidade e simplicidade. E será da Emilia a prioridade neste percurso.

Segundo Filipouski, “trazer a vida brasileira à consciência infantil e desenvolver um sentimento de nacionalidade atuante foi a mais importante função da literatura de Lobato que, por isso, se constitui na referência máxima da literatura infantil brasileira, permanecendo ainda hoje como um desafio atual”.


Uma articulação entre literatura, fala e linguagem


Roland Barthes defendeu a literatura como sendo o resplendor de uma revolução permanente da linguagem. Na conferência de março de 1964 , ao trabalhar a articulação entre os dois termos acima referidos, Foucault insere a obra como um terceiro a fim de compor um triângulo. Destaca, em primeiro lugar, que “a linguagem é tanto o fato das palavras acumuladas na história quanto o próprio sistema da língua”; em segundo lugar, existe a obra que é “essa coisa estranha no interior da linguagem, ou seja, aquilo que se constitui como volume opaco, provavelmente enigmático”. E por fim, “a literatura que é, de certo modo, um terceiro termo, o vértice de um triângulo por onde passa a relação da linguagem com a obra e da obra com a linguagem”.

Seguindo essa trilha, vamos trazer um quarto termo: a fala. A Psicanálise trata a linguagem como um sistema de significantes, mas a fala portará sempre a presença do desejo e da falta, fazendo a tradução do sujeito frente a si mesmo e de seu desejo. Para não desaparecer vivo, seu último recurso é falar. Sujeitos à palavra, Macunaíma e Emília passam a questionar o lugar da fala, da fala nossa de cada dia, essa fala tão pouco nossa, tão do Outro.

Falamos com o Outro e a relação de fala, por ser um diálogo, pressupõe um mundo simbólico comum aos interlocutores. Aquele que fala não constitui um significado, não produz um novo sentido, a não ser pelo próprio ato de fala, um ato que tem como horizonte o mundo na sua totalidade. Veremos que o sentido da fala está, portanto, na afirmação da certeza do sujeito, e deste referencial tanto Macunaíma quanto Emília são dois belos exemplares.

Porém, faz-se necessário ressaltar que ambos têm uma particularidade: nossos heróis falam tarde. Um, por preguiça e a outra, por ter a fala recolhida. Ou seja, ambos são portadores de falas tardias. Qual será, contudo, o apontamento desse tempo na constituição dos personagens, senão reforçar o potencial dessa fala? A história não escreve e impõe sua própria temporalidade, promovendo até mesmo sua reversão? Ela traz inserida simultaneamente o disfarce do sujeito e o desenvolvimento de sua verdade. Sua sustentação se faz a partir de um “ponto obscuro” central, situado fora dela mesma, ao mesmo tempo que permite o “acesso privilegiado desse recalcado atemporal”. Ela tem função de “revelação”, possibilitando ao sujeito seu advento como personagem central de sua própria história em todas as suas variações.

A linguagem é o balanço do movimento de esconder e desviar. Ela cuida desse movimento, “preserva-o, perde-se e confirma-se nele”. E assim fica claro que a palavra essencial do desvio é também a palavra em que gira o tempo, dizendo o tempo como virada, processo de revolução, destaca Maurice Blanchot.

Para Freud , o herói é sempre um usurpador da autoria coletiva do ato. Refere-se ao herói solitário em luta, contra tudo e contra todos, para fazer valer o seu desejo.
Lembra também que o escritor apresenta-o ao leitor de forma sedutora, a fim de que este estabeleça uma certa afinidade e identificação com o herói, com uma postura bastante condescendente e ainda avalizando suas transgressões.

Valendo-nos da expressão criada por Haroldo de Campos no seu estudo sobre Macunaíma, qual seja, a desorganização anárquica do herói, defendemos que o texto dos heróis nacionais, Macunaíma e Emília, se faz numa linguagem que transgride, desmonta, desconstrói suas próprias leis. Deste modo nos remetem a Maurice Blanchot, quando ele afirma que a essência da literatura “é escapar a toda determinação essencial, a toda afirmação que a estabilize ou a realize”, uma vez que ela “nunca está aí, ela sempre está por ser encontrada ou inventada”.

O texto não é somente, e muito menos se esgota em, uma única interpretação. O escritor porta apenas parte da palavra que escolheu. Sendo o leitor um sujeito para sempre barrado, cabe a ele compor a outra parte porque “o texto sobretudo o texto literário, é uma estrutura com lugares vazios”, segundo palavras de Costa Lima . Deste modo cabe ao leitor elaborar, inventar, como lhe aprouver, a partir das inúmeras possibilidades de que dispõe. Ou não.

O enfoque das vertentes interpretativas dos personagens de Mário de Andrade e de Monteiro Lobato, Macunaíma e Emilia, respectivamente, nos faz lembrar que eles existem como mitos modernos, e um de seus pontos de sedução é a falta de limites de ambos ao estabelecer uma relação lúdica e sincrética com a cultura e com a linguagem. Ao construírem a lei, deixam implícito a não submissão e a depreciação que dela fazem. Sendo assim abrem para o leitor uma trajetória individual para percorrerem seu rico universo simbólico.

Ram Mandil recorta em Blanchot que a literatura é uma experiência para ser levada adiante sempre em nome próprio. Deve ser tomada como aquilo que, ao dirigir-se para fora de si mesma, está indo, na verdade, em sua própria direção, “guiada pelo que tem de irreal, impossível ou irrealizável como essência”, já que ela constitui-se como “uma busca inquieta e infinita de suas próprias origens”, uma busca pelo “poema do poema”.

José Miguel Wisnik aponta que “o fim do conto é o canto”. Macunaíma desliza numa narrativa onde o início e o final são momentos que se ligam e se religam, provocando rotação. Narrativa circular, onde o conto e o canto da obra, “que narra e pensa o narrado” têm “a narratividade como o verdadeiro protagonista”. Já em Lobato, seus personagens protagonizam com a Emília histórias contadas do ponto de vista da criança, onde cada volume não passa de um capítulo, podendo ser lido separado ou em seqüência. Uma narrativa sem fim, calcada na atemporalidade do processo de criação.

Ainda com Blanchot, é possível avançarmos nessa análise concluindo que Macunaíma e Emília nos apontam que “o ato da escrita exige o abandono de princípios, ou seja, o fim e também a conclusão de tudo o que garante nossa cultura, não para voltar idilicamente atrás, mas antes, para ir além, ou seja, até o limite, com o objetivo de romper o círculo, o círculo de todos os círculos: a totalidade dos conceitos que funda a história, nela se desenvolve e da qual ela é o desenvolvimento. Escrever, nesse sentido, supõe uma mudança radical de época, ou seja, o “fim da história”. Escrever, desse ponto de vista, constitui uma das maiores violências que existe, pois transgride a Lei, toda lei e sua própria lei”.

Referências bibliográficas

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16- STEGAGNO- PICCHICO, Luciana História da Literatura Brasileira. RJ: Lacerda, 2004

Nota: Escrevi esse texto para ser apresentado durante uma Jornada do Centro de Estudos de Fernando Pessoa em 2005. Minha opção por sua postagem nesse Blog foi como a de um texto inaugural, já que, a meu ver, ele faz uma tradução do que o Projeto Rayuela se propõe alcançar. Por outro lado me dei conta do quanto essa temática me é importante e de que ela me acompanha já há algum tempo.