Inesgotáveis são as abordagens de uma obra e, mais inesgotáveis ainda se tornam, quando se trata de Clarice Lispector. Figura singular dentro do cenário da literatura brasileira, a autora inaugurou uma nova fase que alcançou a prosa de toda a América Latina.
Semana passada concluí o curso em torno de "Água Viva", um livro que trata da liberdade de viver. É para mim, sempre, uma experiência muito enriquecedora quando me proponho a falar de Clarice Lispector, já que ela nos coloca frente a uma experiência estética do mundo, oferecendo-nos textos altamente instigantes, marcados em geral por forte ficção introspectiva.
Na primeira aula "Água Viva" foi situada como resultado da redução de uma produção anterior intitulada "Objeto Gritante". Em seguida foi dado tratamento à desconstrução e o redimensionamento da linguagem no texto, ao propor o diálogo sobre o indizível. O terceiro encontro tratou da poética do silêncio, dando ênfase às "cenas fulgor" e à escrita em si, quando foram feitas algumas articulações com as obras de Maria Gabriel Llansol e Manoel de Barros. E por fim, o enfoque foi voltado para a temática do espelho e do duplo, transitando entre o desconhecer-se e o conhecer-se e abrindo alguns caminhos até os mestres argentinos Borges e Cortázar, com o propósito de um traçado em torno da literatura da América Latina.
Em "Água Viva" Clarice articula uma escrita que se faz com o corpo inteiro, querendo alcançar mesmo a impossível fixação do incorpóreo. A narradora, uma pintora sem nome que, ao abrir mão do pincel, pinta através das palavras e segue tecendo uma possível reinvenção do amor. Porém, o cerne de "Água Viva" não é contar uma história, pois não há uma narrativa, mas sim uma intenção de apreender o "instante-já", o presente puro, ou seja, a forma fantasmática de paralisar o presente. Sua trama é tênue: trata das sensações de um eu, no feminino, que se dirige a um tu, no masculino. Sensações e ânsias.
Em movimento circular ininterrupto o texto transita entre a pintura, a escritura e a música. "Gosto de intensidades", afirma a narradora, que quer, respectivamente, pintar o "figurativo do inominável", escrever "uma verdade inventada", sem sentido, o além da linguagem, o atrás do pensamento, e, por fim, ouvir uma música de câmara sem melodia, como forma de expressar o silêncio. Sua escrita "é de câmara". Linguagem de desconstrução.
A escrita prossegue com um texto híbrido, que transita ente o orgânico e o inorgânico, produto de intensa liberdade e de uma postura revolucionária da língua, e deste modo "Água Viva" se faz em perfeita poesia escrita em prosa, onde o enredo tem importância secundária. O mesmo acontece com o espaço geográfico e o tempo cronológico, uma vez que a narrativa concentra-se no aspecto emocional tanto do primeiro quanto do segundo. Pode ser considerada uma obra ao avesso, uma não-linguagem, uma escrita não-verbal. Uma escrita para ser ouvida, além de ser lida. Ou melhor, uma escritura que pede leitura e escuta, a escuta da voz do texto, a escuta do pensamento de Clarice Lisepctor.
Uma outra característica do livro é que, ao ser movido pela agudeza e pelo fluxo do pensamento, coloca de lado os princípios do texto convencional, abandonando as normas começo/meio/fim, ou ainda, sujeito/verbo/predicado. Desobriga-se das formalidades, fazendo uma verdadeira "convulsão da linguagem", segundo a própria Clarice, em incessante movimento de deslocamento e descolamento. Uma linguagem que tem a marca do inconcluso, do não-fechamento, marca esta que está claramente expressa na frase final do livro:"O que te escrevo continua e estou enfeitiçada."
Água que desliza, escorre, em fluxo incessante. Água de vida. Em processo de contínua abertura, a palavra segue em seu processo de criação, falando das origens, jogando seu anzol às profundezas, "... a palavra pescando o que não é palavra", buscando alcançar a escrita de um universo arcaico, pré-reflexivo, ou seja, o âmago de tudo, o indizível. Procura o que está atrás do atrás do pensamento, levando-nos a um momento silencioso ou carregado de ruído. Tanto faz. Um desejo regressivo de ouvir o grito do objeto.
São palavras pulsantes, capazes de invocar algo mais além delas mesmas, que compõem uma linguagem fragmentária, calcada na experiência de travessia do espelho. Uma metáfora da atitude amorosa do sujeito que possibilita sua ligação à própria imagem e que mediatiza suas relações com os objetos do mundo.
Clarice fala ainda das obscuridades que a assediam, ao tomar a palavra sem medo de comprometer-se. Ao contrário, ela enfrenta o desconhecido, o significante fechado e escondido, visando o secreto, mesmo sabendo-o incapaz de expressão, e, ao querer fazer seu contorno, explicita o mutismo e modela uma poética do silêncio, através de uma eloqüência incomparável.
Acredito que Clarice ao escrever a partir do balbucio, das primeiras emissões de sons da fala, do lugar que fica atrás do pensamento engendra uma homenagem ao próprio ato da escrita, à escrita em si. Trabalha, em texto de colagens, uma escrita tramada em torno da presença da palavra viva.
Singular, ambígua, irredutível em sua proposta polifônica "Água Viva" leva-nos por fim a enfrentar uma área plena de explorações. Assim sendo, concluo apontando para a importante possibilidade que o leitor tem, ao aproximar-se da reflexividade da obra e acompanhar o caminho de despersonalização da narradora/pintora, de fazer a (des)construção do texto de seu próprio processo identificatório, caminho próximo ao processo psicanalítico, experiência que poderá ser dolorosa, mas que será sempre renovadora.
domingo, 12 de abril de 2009
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